Confesso a Deus todo-poderoso

e a vós irmãos…

Começa com a celebração da Eucaristia e imposição das cinzas o tempo forte e empolgante da Quaresma. O Papa, na sua Mensagem, apresenta a Quaresma como um caminho no “deserto”, “o lugar do primeiro amor”, onde “Deus educa o seu povo, para que saia das suas escravidões e experimente a passagem da morte à vida”. 

Neste deserto o jejum, a oração e a caridade ajudarão a reavivar esse primeiro amor.

No nosso Itinerário Pastoral da Diocese – “Todos, todos, todos: Caminhar na Esperança” – propomo-nos começar pelo que somos para chegar ao que devemos ser. Também espiritualmente podemos deduzir uma prioridade quaresmal: começar por dentro! É dentro de cada um de nós que podemos afogar na misericórdia de Deus o pecado, as falhas de caridade e as injustiças para, logo de seguida, partir livres para amar a todos.

Amar é fruto de uma decisão”, dizia alguém num encontro com casais. O amor, como a vida cristã, é um projeto sempre inacabado, mesmo quando resultado de decisão refletida e livre. Com o batismo começa a nossa libertação, mas permanece em nós uma tendência inexplicável para a escravidão. É como que uma atração pela segurança das coisas já adquiridas em detrimento da liberdade. Há também em todos nós uma necessidade quase biológica de recomeçar, de pedir desculpa e receber o perdão, porque o amor precisa de ser declaradamente autêntico para nos fazer felizes. A Quaresma é uma ajuda sábia a esta necessidade. 

Recorda-nos a Liturgia que a Quaresma é o sinal sacramental da nossa conversão. Um sinal que deve ensinar e marcar, com um traço profundo, ainda que por um tempo limitado de 40 dias, a nossa vida vocacionada para amar sempre. Também Jesus se afastava das multidões para dar primazia ao Pai, encontrando-se com Ele no deserto da oração.

Confesso a Deus todo-poderoso…

A própria Celebração Eucarística inicia-se com um Rito que proponho seja valorizado. O átrio eucarístico, como um vestíbulo, oferece a todos a possibilidade de um Ato Penitencial, um momento para o reconhecimento dos próprios pecados e, assim, poder entrar, purificados, na sala da celebração eucarística. Purificando o coração e a mente, preparamo-nos para acolher com fé o Mistério. No “confesso”, cada crente, sabendo-se frágil, coloca-se diante do Senhor e, inserido numa comunidade – Assembleia –, faz a confissão da sua vida, para depois poder celebrar a grandeza do Senhor com a confissão da sua fé.

O Ato Penitencial, colocado no início da Celebração Eucarística, não substitui certamente o Sacramento da Reconciliação, não é um sacramento em sentido estrito, mas tem um valor sacramental e pedagógico, porque nos educa a reconhecermo-nos pecadores e a invocar a misericórdia não só como um ato individual mas também como um ato eclesial com consequências existenciais muito significativas.

Este Ato traduz a vontade de reconciliação nas relações pessoais e sociais, porque cada ferida infligida a Deus é, ao mesmo tempo, uma ferida para o nosso irmão e irmã e vice-versa.

… e a vós, irmãos.

Neste ínicio de Missa, entramos em nós mesmos. Eu peço pelos outros e os outros intercedem por mim e, neste círculo de amor, constrói-se a Igreja, essa morada do dom de Deus, a terra salva que oferece salvação. Aqui a Igreja dos pecadores santifica-se para santificar o mundo!

Só depois deste Ato, lúcido e sereno, verdadeiro e sincero, é que o Presidente da Celebração pode repetir: Que Deus Todo-Poderoso tenha compaixão de nós, perdoe os nossos pecados e nos conduza à vida eterna. O Ato Penitencial, redescoberto e bem feito, pode ser uma ajuda para o nosso caminho quaresmal e para podermos chegar à terra da Páscoa, reconstruídos por dentro, verdadeiros artesãos da paz e do amor.

Diz o Papa na sua mensagem para a Quaresma que há o risco de “nos apegarmos ao dinheiro, a certos projetos, a ideias, à nossa posição, a uma tradição, até a algumas pessoas” e que “o êxodo da escravidão para a liberdade não é um caminho abstrato”, mas encontro com o próximo sedento de Deus, pois “o grito de tantos irmãos e irmãs oprimidos chega ao céu”.

Confesso … a vós irmãos” é um pedido poderoso se consciente. Sem este perdão pedido aos irmãos não se avança para Deus, ficamos colados ao humano que nos domina. Perguntemo-nos, então: chega esse grito também a nós? Abana-nos? Comove-nos? “A terra, o ar e a água estão poluídos”, continua o Papa, “mas as almas também”.

Deixemos que cheguem ao nosso coração as angústias e esperanças dos irmãos de caminho. Falhamos nas palavras e atos não aprofundando os relacionamentos construtivos, mas o maior pecado dos nossos tempos é porventura o da omissão: seja às obrigações para com Deus, seja para com os irmãos, sobretudo os carenciados. A omissão, que mergulha na indiferença e tantas vezes na intolerância com o outro, torna-nos egoístas e autorreferenciais. Isola-nos e faz-nos pouco fraternos.

Neste tempo de reacerto connosco, com Deus e com os outros, aprendamos a arte da moderação e do cuidado. Vejamos no outro o nosso irmão, independentemente da sua circunstância. E façamos tudo para o ajudar na defesa da sua dignidade.

Destino da Renúncia Quaresmal

Este ano podemos concretizar a partilha, apoiando com o f com o próximo apoiando, com o fruto das nossas poupanças ou renúncia quaresmal, dois projetos.

O primeiro é com os irmãos de S. Tomé e Príncipe. Recebemos o pedido do PDIL – Projeto de Desenvolvimento Integral de Lembá – na cidade das Neves, onde trabalha há quase 25 anos a nossa missionária, a Irmã Lúcia Cândido das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição, também presentes na nossa Diocese. O Projeto é desenvolvido pelaAssociação Abraçar São Tomé e Príncipe, o Centro Social Mãe Clara, que dá mais de 2000 refeições a crianças e idosos; a Escola Nossa Senhora das Neves para mais de 800 crianças; o Centro Despertar, para mais de 200 crianças e a Sala de Informática da Escola Nª Srª das Neves. 

O segundo Projeto será o “Mison Corason 997” que vários açorianos já apoiam e é desenvolvido pelo Centro Educativo do Sagrado Coração de Jesus, dirigido pela Madre Maria do Carmo Borges, superiora das Irmãs Reparadoras do Sagrado Coração de Jesus, na cidade da Praia, Cabo Verde. Para além de muitas outras necessidades, a Cáritas Diocesana de Santiago-Praia manifestou a necessidade de se construir um depósito de água potável na escola primária de Pingo de Chuva, cujo projeto ronda os 8000€. Vamos tentar pagá-lo na íntegra. Basta que todos encaminhem as suas renúncias.

Voltar à Eucaristia dominical

Por fim, convido todos, todos, todos a voltar à Eucaristia nesta Quaresma. Atrevo-me a entrar em vossas casas, para abanar a consciência dos pais de família para a importância de serem naturais educadores e transmissores da fé e para fazerem um programa conjunto de caminho espiritual nesta Quaresma. O que for possível, mesmo se pouco, poderia ajudar a todos.

Muitos ainda continuam em tempo de pandemia, confinados às paredes das suas casas, sem fazer comunidade! A fé não enraíza nem produz frutos de caridade sem espiritualidade, sem uma vida espiritual comunitária. Para começar por nós e por dentro.

Deixemos que Jesus nos converta e semeia o desejo sincero de começar por nós e por dentro,  para sabermos estar com todos e para os outros. A Missa Dominical pode ser o grande barómetro da Quaresma.

Na montanha eucarística, Jesus continuará sempre a erguer os braços para nos ajudar a vencer as batalhas da vida e a caminhar no nosso itinerário diocesano de esperança. São Bento, o pai do monaquismo no Ocidente, dava um belo e eficaz conselho aos seus monges para viver o tempo da Quaresma. Aconselhava a leitura ininterrupta de um livro para fixar a mente e o coração na vida interior. Proponho, também eu, como leitura, o conjunto das catequeses que o Papa está a proferir ao longo destas semanas sobre Vícios e Virtudes. Com uma linguagem simples e clara, Francisco ajuda-nos a discernir sobre as nossas emoções mais profundas e as nossas atitudes. 

O importante é fazer um caminho a partir de dentro! Daqui a quarenta dias cantaremos, juntos e renovados, o Aleluia Pascal.

Votos de uma Santa Quaresma!

+ Armando esteves Domingues, bispo de Angra

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