Santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres.
Estamos no rescaldo da festa do Senhor Santo Cristo dos Milagres, com o corpo dorido do dia de ontem, da experiência física e longa de «caminhar juntos com Cristo», mas sobretudo da experiência espiritual e emocional que todos vivenciamos. As celebrações são tão espontâneas, tão vividas e tão intensas que a natureza das coisas como que impõe um inevitável descanso no primeiro dia útil que se lhes segue. E aqui estamos a reagir com a distensão possível ao impacto dos dias anteriores.
Após dois anos sem nos encontrarmos presencialmente, chegou a feliz hora de nos colocarmos diante de Cristo, ao lado uns dos outros, em caminho sinodal, de comunhão, participação e missão, de olhar fixo no mesmo Senhor, podendo ver, ouvir, tocar, cheirar e saborear os milagres que aqui acontecem.
Depois dos fenómenos inesperados da segunda década do século atual, aprendemos a dar valor ao que somos e temos, pelo que perdemos sem querer, e pelo que devemos querer perder. A pandemia e a guerra, fenómenos que julgávamos arcaicos e ultrapassados, de consequências nefastas de longo alcance, já vistas e ainda desconhecidas, estão aí na dureza da realidade e dos seus efeitos.
Nesta festa descobrimos o Mistério que está dentro de nós, pelo desejo do coração humano que se cruza com o amor de Deus que trata e salva, mistério com o qual nos encontramos, tomando consciência dessa presença transcendente que nos habita, mediante a mediação inspiradora da imagem do Senhor Jesus na sua paixão. Essa é também a paixão da Humanidade atual que não ignoramos, por paradoxal que possa parecer num ambiente de festa.
A partir de agora, nada está adquirido, como sempre foi. A decisão ética e o imperativo da fé não fazem parte de um progresso garantido sempre crescente, linear ou de uma conquista vitalícia. A fé em Cristo é uma decisão sempre renovada em cada sujeito e em cada geração.
Viemos Senhor! E o que vimos? Vimos o Senhor! Como?
«Uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, que ninguém podia contar. Estavam de pé diante do trono e do Cordeiro; prostraram-se diante do trono de rosto por terra, e adoraram a Deus dizendo: «A bênção, a glória, a sabedoria e a ação de graças, a honra, o poder e força ao nosso Deus, pelos séculos dos séculos». Um dos anciãos perguntou quem são estes? São os que vieram da grande tribulação. Lavaram as suas roupas no sangue do Cordeiro. Estão diante do trono de Deus e prestam-Lhe culto, dia e noite, no seu templo. E aquele que está sentado no trono os abrigará na sua tenda, será o seu pastor e os conduzirá às fontes da água da vida. E Deus enxugará as lágrimas de seus olhos» (Ap. 7, 9-17).
A visão que São João teve e deixou narrada no livro do Apocalipse dá-nos as palavras que nos faltam para dizer o que ainda nos espera, mas também nos ajuda a exprimir o que vimos e sentimos estes dias.
Nós não somos os únicos que fizeram esta experiência de fé e de apoio no Senhor Bom Jesus ou Santo Cristo. Por exemplo, sob a designação de “Mártires do Japão” estão englobados 205 mártires, que deram a vida pela fé, entre 1617 e 1632, na terrível perseguição movida, em Nagasáki e Tóquio, durante 15 anos. No reconhecimento público desse testemunho, foram beatificados por Pio IX, em 1867. Ao todo, são 166 cristãos leigos (quase todos japoneses) e 39 sacerdotes. Dos sacerdotes 13 eram jesuítas, sendo cinco portugueses. São conhecidos os seus nomes, a quem a Santa Sé concedeu celebração própria, como para João Baptista Machado, sacerdote, nascido em Angra e degolado em Omura, a 22 de maio de 1617. Os católicos que sobreviveram à perseguição tiveram de ocultar-se durante 250 anos, até a chegada de missionários europeus no século XIX, para voltarem a professar publicamente a sua fé. É já o papa João XXIII em 1962 que proclama João Batista Machado, padroeiro da diocese açoriana, cuja festa 405 anos depois, celebramos hoje.
Eis-nos aqui, na 2ª. Feira do Senhor Santo Cristo, a celebrar a solenidade de um jovem mártir açoriano que mais não fez do que seguir radicalmente o Senhor Jesus, no anúncio da salvação a todos os povos, a sofrer a paixão e a morte, com os olhos postos na vida eterna, da comunhão e felicidade com Deus que ninguém apaga.
Viemos aqui, Senhor Santo Cristo. E agora? Que queres que eu faça? Decerto, vamos diferentes para casa. O que vimos, o que ouvimos, o que saboreámos, o que sentimos estremece connosco, pela autenticidade das lágrimas, por um cansaço não doentio, por uma festa que não aliena, por um sofrimento que alegra interiormente.
É o segredo da paixão de Cristo que terá dado alento à vida, missão e morte de João Batista Machado, nosso padrão, modelo e referencia, a não nos iludirmos com algum modo fácil ou superficial do seguimento de Jesus, tal como a sua imagem foi despojada de vestes e joias, mostrando na nudez o que na verdade somos. Fiquemos com a corda da paixão e com rezemos com o poeta a oração da Igreja:
Atei os meus braços com a tua Lei, Senhor /E nunca os meus braços chegaram tão alto! Ceguei os meus olhos com a tua Luz, Senhor / E nunca os meus olhos viram tão longe! Só desde que Te dei a minha alma, Senhor /Ela é verdadeiramente minha.
Por isso, hei-de subir até à Vida /Despedaçando o corpo na subida.
Por isso, hei-de gritar, de porta em porta /A mentira das noites sem estrelas/ Hei-de fazer florir açucenas nos meus lábios; Hei-de apertar a mão que me castiga; Hei-de beijar a cinza dos escombros;
Hei-de esmagar a dor/ E hei-de trazer, aqui, sobre os meus ombros / A tua cruz, Senhor.
Em cada dia 23 do mês, em ordem às jornadas mundiais da juventude de 2023, a Igreja propõe que os jovens se encontrem, inspirados na afirmação do Livro dos Atos dos Apóstolos “Levanta-te! Eu te constituo testemunha do que viste!” (cf. At 26, 16). Gostaria de alargar este apelo a todos quantos viemos aqui, com o mesmo destino e propósito, a sermos testemunhas do que vimos. Ao terminar a festa ouçamos o Papa Francisco, no última dia mundial da juventude, que nos manda levantar.
«Hoje, o convite de Cristo a Paulo é dirigido a cada um e cada uma de vós, jovens: Levanta-te! Não podes ficar por terra a «lamentar-te com pena de ti mesmo»; há uma missão que te espera! Também tu podes ser testemunha das obras que Jesus começou a realizar em ti. Por isso, em nome de Cristo, eu te digo:
– Levanta-te e testemunha a tua experiência de cego que encontrou a luz, viu o bem e a beleza de Deus em si mesmo, nos outros e na comunhão da Igreja que vence toda a solidão.
– Levanta-te e testemunha o amor e o respeito que se podem estabelecer nas relações humanas, na vida familiar, no diálogo entre pais e filhos, entre jovens e idosos.
– Levanta-te e defende a justiça social, a verdade e a retidão, os direitos humanos, os perseguidos, os pobres e vulneráveis, aqueles que não têm voz na sociedade, os imigrantes.
– Levanta-te e testemunha o novo olhar que te faz ver a criação com olhos cheios de maravilha, te faz reconhecer a Terra como a nossa casa comum e te dá a coragem de defender a ecologia integral.
– Levanta-te e testemunha que as existências fracassadas podem ser reconstruídas, as pessoas já mortas no espírito podem ressuscitar, as pessoas escravizadas podem voltar a ser livres, os corações oprimidos pela tristeza podem reencontrar a esperança.
– Levanta-te e testemunha com alegria que Cristo vive! Espalha a sua mensagem de amor e salvação entre os teus coetâneos, na escola, na universidade, no trabalho, no mundo digital, por todo o lado.
O Senhor, a Igreja, o Papa confia em vós e constituem-vos testemunhas junto de muitos outros jovens que encontrais pelos «caminhos de Damasco» do nosso tempo. Não vos esqueçais: «Se uma pessoa experimentou verdadeiramente o amor de Deus que o salva, não precisa de muito tempo de preparação para sair a anunciá-lo, não pode esperar que lhe deem muitas lições ou longas instruções. Cada cristão é missionário na medida em que se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus» (Evangelii gaudium, 120).»
Ontem, João Batista Machado, hoje, cada um de nós, que se encontrou de Cristo Vivo.
Hélder, Administrador Diocesano de Angra