Abertura do ano litúrgico. Primeiro domingo do Advento.

Sé, 27 de Novembro de 2022

«Nos ritmos e nas vicissitudes do tempo recordamos e vivemos os
mistérios da salvação. Em cada domingo, Páscoa semanal, a santa Igreja
torna presente este grande acontecimento no qual Jesus Cristo venceu o
pecado e a morte. Da Páscoa derivam todos os dias santos: o primeiro
Domingo do Advento, a 27 de Novembro (…). A Cristo, que era, que é e
que há-de vir, Senhor do tempo e da história, louvor e glória pelos séculos
dos séculos». Foi nestes termos que anunciamos, em Janeiro passado, a
Páscoa e por ela o primeiro domingo do novo ano litúrgico e do Advento
que é hoje.
Nos dias de Noé os homens «comiam e bebiam, casavam e davam em
casamento.» Mas que mal faziam eles? Podemos perguntar hoje. Estavam
apenas empenhados em viver. Jesus relativamente a eles não fala de
pecados ou de injustiças, mas de algo demasiado quotidiano e doméstico;
não fala de vícios nem de excessos, mas de uma vida sem profundidade,
quando comer é mais do que mastigar, beber e mais que engolir, e casar é
mais que ter relações conjugais.
Esses dias de Noé são os meus dias, em que me interesso apenas pela lista
básica das minhas necessidades e já não sei sonhar, escutar, contemplar,
esperar; quando esqueço que o segredo da minha vida me ultrapassa,
quando aplaco a fome do céu com pequenos pedaços de terra. Além disso
«comiam e bebiam … e não deram por nada». É possível viver «sem dar
por nada», sem saber porquê e sobretudo para quem.
O tempo de advento é precisamente um tempo para darmos conta de (…),
para nos apercebermos, para sairmos da superficialidade; tempo da
atenção, que quer dizer, de tornar profundo, denso cada momento, cada
rosto. O rosto encarnado de Jesus de Nazaré, no presépio, na Cruz e no
altar da Eucaristia.
O rosto das crianças vítimas da fome, do abandono, da violência, dos
abusos; o rosto das mulheres vitimas da violência e do machismo, usadas
ou abusadas; o rosto dos que buscam uma sobrevivência digna, com

abrigo, com trabalho e com teto; o rosto dos trabalhadores precários e
dos jovens que procuram emprego; o rosto dos doentes, dos presos e dos
idosos que facilmente são descartáveis; o rosto dos que perderam a
esperança a quem o futuro foi hipotecado ou roubado; os que vemos,
ouvimos e lemos as ameaças da destruição do nosso planeta e não damos
por nada.
Para quem vive neste estado precisa de um advento, de uma esperança
que não engane, de um futuro que é em Deus. Se não vamos ao encontro
d’Ele é Ele que vem ao nosso encontro. Não podemos é «não dar por
nada».
A Palavra de Deus diz-nos hoje: «Andemos dignamente, como em pleno
dia, evitando comezainas e excessos de bebida, as devassidões e
libertinagens, as discórdias e os ciúmes; não vos preocupeis com a
natureza carnal, para satisfazer os seus apetites, mas revesti-vos do
Senhor Jesus Cristo».
Para o Papa Francisco, precisamos estar vigilantes para não arrastar os
nossos dias para o hábito, para não nos fazer ficar pesados pelas
preocupações da vida. Hoje é uma boa oportunidade para nos
perguntarmos: o que pesa no meu espírito? O que me faz acomodar na
poltrona da preguiça? Quais são as mediocridades que me paralisam, os
vícios que me esmagam até ao chão e me impedem de levantar a cabeça?
E com relação aos fardos que pesam sobre os ombros dos irmãos, estou
atento ou indiferente?
Pelas palavras de Cristo, vemos que a vigilância está ligada à atenção, ao
cuidado, não se distraiam, ou seja, fiquem acordados! Vigiar significa não
permitir que o coração se torne preguiçoso e que a vida espiritual se
enfraqueça na mediocridade. Ter cuidado porque se pode ficar
adormecidos, sem impulso espiritual, sem ardor na oração, sem
entusiasmo pela missão, sem paixão pelo Evangelho. E isto leva a
“adormecer”: a continuar com as coisas por inércia, a cair na apatia,
indiferentes a tudo, excepto ao que nos convém.
O evangelho não é uma ameaça, nem Jesus um ladrão, mas aponta duas
maneiras diferentes de viver: na alienação e na atenção, na escuta e na

contemplação: de quem vive debruçado sobre o infinito e sobre o mundo
concreto e de quem vive fechado na sua pele, em si e para si; de quem é
generoso com os outros em termos de pão e de amor e de quem está
inclinado sobre o seu prato e o seu telemóvel.
Entre estes dois estilos de vida, só um está preparado para o encontro
com o Senhor; o outro não se apercebe de nada; um vive da maneira
adulta, o outro vive de maneira pueril, distraído nos seus jogos, para todas
as idades. O Evangelho não fala de um ladrão que nos vem roubar a vida,
nem de um vulcão iminente, mas de uma surpresa, de um encontro
imprevisto, inesperado, da irrupção de Deus, na minha história, que com
Ele é uma história que tem salvação.
Por isso devemos estar interiormente no mínimo em estado de alerta, se
necessário em estado de contingência e em alguns casos mesmo em
estado de calamidade. Cada um veja em que estado ou nível se coloca
neste tempo do advento e que tome as medidas adequadas à protecção
do nosso bem-estar, quer dizer à protecção do bem ser.
O Senhor Jesus não vem para nos tirar ou roubar nada; vem sem nada
para nos dar tudo; mas primeiro temos de nos esvaziar de coisas fúteis e
inúteis, de coisas que não saciam, de vaidades no sentido de vanidades,
de tal modo que quando Ele vier encontre estalagem para nascer, crescer
e habitar. Então quando Ele entrar a minha vida muda, o olhar, o sentido,
os rostos, os horizontes, a força e alegria.
Voltando à Palavra de Deus deste dia ouvimos: «Vós sabeis em que tempo
estamos: Chegou a hora de nos levantarmos do sono, porque a salvação
está agora mais perto de nós do que quando abraçámos a fé. A noite vai
adiantada e o dia está próximo. Abandonemos as obras das trevas e
revistamo-nos das armas da luz».
A luz é a nossa arma. A luminosidade de um olhar é uma arma fortíssima,
porque projecta luz, franqueza e confiança, para dentro e para fora. Os
nossos olhos não só vêem a luz, como são fonte dela; há olhares que
espalham luz à sua volta como uma candeia, tal como afirma o livro dos
provérbios «Um olhar luminoso alegra o coração» (Prov. 15, 30).

Não é por acaso que no cancioneiro regional açoriano, em Olhos Negros a
gente canta: «Os teus olhos são brilhantes, semelhantes aos luzeiros que o
céu tem», ou seja, não somos apenas consumidores de luz, mas seus
produtores e projectores, quando «abandonamos as obras das trevas e
nos revestimos das armas da luz».
Ao celebrarmos a Eucaristia, temos consciência de que ela nos oferece já o
penhor da nossa salvação. De facto, a salvação está agora mais perto de
nós, assim o desejemos pois «agora e em todos os tempos, Cristo vem ao
nosso encontro, presente em cada pessoa humana, para que o acolhamos
na fé e o testemunhemos na caridade, enquanto esperamos a feliz
realização do seu reino». Assim seja.

Hélder, Administrador Diocesano de Angra

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