No V centenário do terramoto da Vila Franca do Campo
1522 – 22 de outubro – 2022
Passam hoje 500 anos da lamentável catástrofe que se abateu sobre Vila
Franca do Campo, na noite de 21 para 22 de outubro de 1522. Embora
não seja motivo para celebrar festivamente, não podemos deixar de
comemorar tão relevante acontecimento, o primeiro e mais grave após o
povoamento destas ilhas. Não cabe agora fazer estudos do que se passou,
pois disso felizmente tratou o Colóquio Científico Internacional, sobre
catástrofes naturais na história, que esta tarde terminou no Auditório
Municipal, em cujas atas esperamos conhecer o seu resultado, para além
de outros estudos e publicações sobre este magno acontecimento.
Sem esta catástrofe, a história de Vila Franca do Campo e da ilha de São
Miguel seria outra, bem como a da diocese açoriana. Note-se que nessa
época também Vila Franca do Camo pertencia à diocese do Funchal, até
que doze anos depois nascesse uma diocese nos Açores que, certamente,
o terramoto de 1522 condicionou.
Experimentei em primeira pessoa o terramoto de 1 de janeiro de 1980
que destruiu completamente a cidade de Angra do Heroísmo. É uma
experiência que não gosto de recordar nem não pouco simular como já é
possível fazer-se. Estou grato de ser um dos sobreviventes. Ainda hoje a
cada 1 de janeiro às 15.40 h. os sinos da Sé dobram a chorar pelos mortos,
feridos e pela destruição da cidade. Até hoje, ficamos desconcertados,
com um sabor agridoce, entre comemorar ou não esse dia, do qual
felizmente ressurgiu uma nova cidade com as suas novas gentes.
Também em cada dia 2 de novembro comemoramos os fiéis defuntos, e
em cada domingo celebramos, na Eucaristia, a Páscoa da Ressurreição,
isto é a vitória de Jesus sobre o pecado a morte. Assim temos uma razão
para celebrar a reconstrução da vila, das vidas dos nossos antepassados,
rezar pelos que morreram e vivem na comunhão dos santos, e agradecer o
fato de hoje estarmos aqui com uma vila pujante, mais forte e alargada,
mais prudente nas suas construções e no seu desenvolvimento e mais
alegre nas suas gentes.
Trata-se de uma consequência natural de habitarmos em «fogueiras do
mar», como chamou às ilhas um poeta contemporâneo açoriano. Não há
ódios escondidos por resolver como na guerra, nem consta que tenha sido
por mau comportamento humano que tenha levada a alterações
climáticas. Porém como cristãos, cabe-nos sempre fazer uma leitura
crente dos sinais dos tempos na história da salvação.
Sabemos que os nossos antepassados de 1522 já conheciam o texto
evangélico que acabamos de ouvir. Passemos agora para o presente da
nossa conversão. Os destinatários da parábola são «alguns que se
consideravam justos e desprezavam os outros». Uma vez que «Deus não
faz aceção de pessoas», o bom sucesso da oração não reside na condição
sócio religiosa de cada um de nós. Estamos diante de situações
diferenciadas de dois personagens com quem nos podemos identificar.
Um fariseu conotado com a rigorosa observação da Lei e um publicano
conotado com os pecadores. Vejamos como se carateriza cada um deles.
O fariseu, apesar de se dirigir a Deus, fica de pé, quase não precisa d’Ele
uma vez que vê o mundo em função das suas opções; compara-se aos
outros em quem apenas vê apenas defeitos, ligados ao incumprimento da
Lei de Moisés. Agradece por não ser assim, despreza quem não é como
ele, apresenta as suas boas ações numa espécie de currículo de boas
maneiras. Aparentemente faz uma prece de ação de graças, mas na
realidade é uma manifestação dos seus próprios méritos, com sentido de
superioridade em relação aos outros, qualificados como «ladrões, injustos,
adúlteros».
O fariseu reza a Deus, mas na verdade olha e ora por si mesmo. Faz de
conta que reza, mas só consegue pavonear-se diante de um espelho. Não
obstante esteja no templo, não sente necessidade de se prostrar diante de
Deus. É prefeito e irrepreensível. A suas ações são comensuráveis: jejua
duas vezes por semana e paga o dízimo de tudo o que possui. Mais do que
rezar, deleita-se com a sua observância dos preceitos, agradece não aquilo
que Deus fez por ele, mas antes aquilo que ele fez por Deus. O seu «eu»
subsitue-se a Deus. Não sendo injusto como os outros homens não
precisa da justiça de Deus, uma vez que tem a sua própria justiça.
O fariseu faz uma oração que nada pede a Deus, deixando a entender que
a história pode caminhar sem a intervenção divina, pois a sua boa conduta
basta para que ele se salve. Em suma, o fariseu, que se sente justo,
descuida o mandamento mais importante: o amor a Deus e ao próximo.
Ele não se dá conta de ter perdido o caminho do seu coração.
É possível estarmos próximos, rezarmos lado a lado estarmos separados
pela competição, pelo mérito, pela comparação, pelo desprezo ou pela
indiferença. A autenticidade da oração, da oferenda feita ao Senhor no
culto, passa através da boa qualidade das relações com os irmãos que
rezam e formam o Corpo de Cristo.
Este publicano não tem um rol de boas ações para apresentar a Deus, mas
apenas a sua condição de pecador que lhe causa dor e arrependimento
como mostra o gesto de bater no peito e ficar à distância. As posturas do
corpo revelam a qualidade da relação com o Senhor e o sentido do nosso
estar na sua presença.
A humildade aparece naturalmente, sem qualquer orgulho nos seus feitos;
não tem coragem sequer para levantar os olhos. O facto de pedir mostra
que tem consciência de não ser autossuficiente e de precisar da ação e da
justiça de Deus. Os gestos de penitencia e as poucas e simples palavras
dele atestam a consciência acerca da sua condição miserável. Apresenta-
se de mãos vazias, sem dar contas do que faz, com o coração despojado e
reconhecendo-se pecador, o que mostra a condição necessária para
receber o perdão do Senhor. No final é o publicano que se torna um ícone
do autêntico crente.
Posta esta caraterização, podemos perguntar agora, em qual dos
personagens nos vemos refletidos? Em quê e porquê? Recordemos
também as vezes que vivemos e gozamos experiências gratificantes do
perdão de Deus, sobretudo no sacramento da reconciliação. Como
experimentamos pessoalmente a sentença «o que se exalta será
humilhado e o que se humilha será exaltado»?
Das lições que podemos tirar deste quadro, aprendemos que não basta
perguntar quanto oramos, mas sobretudo como rezamos, e mais ainda
como é o nosso coração, pois não é possível rezar com arrogância nem
com hipocrisia. Devemos orar, pondo-nos diante de Deus tais como
somos, sem roupagens. Também vivemos hoje arrebatados pelo delírio do
ritmo diário, muitas vezes à mercê de sensações, atordoados e confusos. É
preciso aprender a encontrar o caminho do nosso coração, sem arritmias,
recuperando o valor da intimidade e do silêncio, pois é ali que Deus nos
encontra e nos fala. A partir daí podemos encontrar os outros e falar com
eles.
Jesus conclui a parábola com uma sentença: «o publicano desceu
justificado para a sua casa e o outro não». Não porque o fariseu tenha
sido castigado, mas porque se fechou em si mesmo, sem reconhecer o seu
pecado, nem se abrir à graça e à misericórdia de Deus. A soberba
compromete todas as boas ações, esvazia a oração, afasta de Deus e do
próximo. A humildade é sobretudo uma condição necessária para sermos
elevados por Ele, de modo a experimentarmos a misericórdia que
preenche os nossos vazios. Se a prece do soberbo não alcançar o coração
de Deus, a humildade do miserável abre-O de par em par.
A parábola ensina ainda que a pessoa é justa ou pecadora não pela sua
condição social, mas pelo seu modo de se relacionar com Deus e de se
comportar com os irmãos. Às vezes cremos, como o publicano, que Deus
nos ama por cumprir a Lei. É como se uma mãe ou um pai só amassem o
filho com a condição de ele cumprir todos os deveres.
O publicano sai justificado porque acreditou que Deus o amava como
pecador. Desta forma Deus desbarata toda a justiça humana para que
apareça a glória da sua graça. Por isso, os pobres, os pecadores, os que
não têm nada nem sabedoria para se defender na vida, são os que se
apoiam no coração misericordioso de Deus que nos perdoa
gratuitamente.
Porém, para quem busca a glória de Deus nas obras próprias,
especialmente nas boas, parece-lhe injusto que Deus seja assim. Quem se
atreve a acolher o amor misericordioso de Deus no seu próprio pecado,
reconhecerá com gratidão humilde que, não tendo nenhum direito a ser
amado e a ser perdoado, só pode ajoelhar-se diante de Deus que foi e
continua a ser fonte de permanente misericórdia. E a gratidão humilde é
fruto da graça que nos faz testemunhas e missionários da misericórdia
divina.
Hélder, Administrador Diocesano de Angra