No 7º. dia da morte de Dom António Braga

Sé, 28 de agosto de 2022

A Palavra de Deus que acabámos de proclamar neste XXII Domingo do
Tempo Comum, na missa de 7º. Dia da morte do nosso querido bispo
emérito, Dom António de Sousa Braga, choca com a mentalidade cultural
actual. Podemos pôr de parte o convite/proposta para não passarmos a
uma atitude alternativa ou desistir perguntando: quem é que faz isso? A
resposta é: Jesus de Nazaré, o Filho de Deus, e aqueles que O querem
seguir, em qualquer tempo e idade. O problema não é só dos nossos dias,
pois já os companheiros de Jesus discutiam pelo caminho qual deles seria
o maior, levando uma repreensão do mestre, com a conclusão de que o
Filho do Homem não veio ao mundo para ser servido, mas para servir e
dar a vida pelos irmãos numa entrega ao Pai.
O contexto imaginativo da perícopa evangélica deste domingo é sugestivo:
«conversações à mesa». Todas as palavras de Jesus se situam ao redor de
uma mesa; por isso não há casa sem mesa, nem igreja sem altar, pois é à
volta da mesa/altar que conversamos, ouvimos a palavra e dialogamos.
Daí a importância que damos a tomar um copo ou um café com alguém,
pois o que levamos não é a mesa, mas a relação que ela representa. A
mesa do evangelho de hoje pode ser a «mesa do Reino», como esperança,
mas também como realidade, a «mesa da Igreja», de onde se joga a mesa
da ressurreição dos justos. Cada domingo, ouvimos a boa notícia: «Felizes
os convidados para a ceia do Senhor».
O género literário das «conversações à mesa» é bem conhecido: os
diálogos de Platão constituem um modelo, e boa parte das obras de
Lutero levam precisamente este nome. Por exemplo, Plutarco, filósofo
grego do séc. II d.C., ao analisar o Banquete, afirma que este não tem
lugar para dar prazer ao corpo, mas sim ao espírito. Depois de o estômago
satisfeito com a comida, chega a altura do verdadeiro banquete, o do
espírito, que tem lugar entre o vinho e as conversas. Quando o corpo está
alimentado, pode falar a alma. Plutarco interroga-se sobre quais serão os
temas mais adequados a essas conversas: «Quais são os gracejos
permitidos?», «podem discutir-se questões filosóficas e políticas?». Onde
fica a convivialidade? De que falamos à mesa? Falamos demais em
comida. Comemos e falamos do que já comemos, do que estamos a comer

e do que vamos comer amanhã. À mesa, a comida pertence ao reino do
corpo e do espírito. Tão importante se torna a comida que não há
comensal que se preze que não tire fotografias ao que está a comer. Será
que a comida ainda vai matar a mesa? – pergunta um cronista dos nossos
dias. Há uma poeta português contemporâneo que diz que à mesa a
gente «come-se mais uns aos outros» do que aquilo que materialmente
comemos. Neste sentido, entendemos melhor a Eucaristia, pois o que
comemos ou quem comemos é Jesus, o ressuscitado, Aquele que afirmou
ser «o Pão vivo descido do Céu; quem comer deste Pão viverá
eternamente».
Ora a assembleia dominical não é em cada semana uma grande
conversação à mesa de Jesus com os seus? A gente ao chegar à igreja
podia preparar logo a mesa/altar e começar a Eucaristia com o ofertório.
Mas não. Levamos meia hora de conversa à mesa, antes de nos sentarmos
à volta dela. A falar é que a gente se entende!
Posto este enquadramento, fixemos duas lições que Deus nos dá hoje
através desta Palavra, e que o nosso antigo bispo de Angra, agora falecido,
viveu profundamente: a humildade e a gratuitidade. Vamos à primeira.
A leitura do livro sapiencial contrapõe o humilde ao soberbo. E diz
«quanto mais importante fores, mais deves humilhar-te, e encontrarás
graça diante do Senhor». Podemos perguntar quem faz isso? Jesus da
Nazaré: ao afirmar: «aprendei de Mim, que sou manso e humilde de
coração». Ou então aquele hino cristológico que canta: «Cristo Jesus que
era de condição divina, não Se valeu da sua igualdade com Deus, mas
aniquilou-Se a Si próprio. Assumindo a condição de servo, tornou-Se
semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda
mais, obedecendo até à morte, e morte de cruz.» Pelo contrário, «a
desgraça do soberbo não tem cura, porque a árvore da maldade criou nele
raízes». O soberbo levanta muros altos à sua volta e diz para si «eu basto-
me a mim mesmo, não preciso dos outros nem tão pouco de Deus». Trata-
se de uma pessoa fechada em si. Que pode inchar.
Ora a humildade não é um prejuízo para perdedores. Ela tem a mesma
raiz da humidade que abunda nas nossas ilhas. Vitorino Nemésio ao

referir-se ao verde viçoso das nossas pastagens explica que se deve à
humidade alta que nos enforma. Olhemos para a seca severa que
lamentavelmente assola o continente português, e de um modo geral
grande parte do planeta, enquanto as nossas ilhas estão verdes, frescas e
com frutos. A que se deve? À humidade que vem da terra e da chuva.
Assim é o homem e a mulher que não querem ter uma vida seca,
queimada e estéril têm de manter níveis altos de humildade, que não os
desliguem do húmus de onde vieram e para onde voltarão. O salmo
responsarial de hoje canta muito bem esse modo de ser de Deus: «Na
vossa bondade Senhor, preparastes uma casa para o pobre».
A segunda lição é a da gratuitidade. Há uma parábola de Jesus sobre um
banquete e os convidados da primeira e da segunda hora. Os da primeira,
desculpam-se com negócios, trabalhos, diversões para faltarem quando
tudo já estava preparado. Então o dono da festa mandou chamar outros
convidados pelas encruzilhadas dos caminhos, aparecendo toda a espécie
de pobres e doentes. Nós não estamos aqui por sermos convidados de
honra, nem pelos nossos merecimentos, mas pela graça de Deus. Então,
devemos aprender também a ter a mesma atitude com os outros.
Na mentalidade cultural actual, tornamos praticamente todas as relações
comerciais: as refeições, os banquetes e até os funerais. Eu vou ao que
devo. Tornamos as relações pessoais numa folha de deve e haver. Ficamos
ofendidos se alguém não nos convida, pois achamos merecer esse convite.
Convidamos pessoas em função de um «capital social» como se fosse um
investimento para que esse capital fique ali para quando for preciso ir
levantá-lo, como se fosse ao banco. Os nossos convites são tantas vezes
interesseiros, isto é, a quem nos pode pagar. Ora é precisamente isso que
o evangelho contesta. Se convidares os que não te podem pagar «serás
feliz por eles não terem com que retribuir-te: ser-te-á retribuído na
ressurreição dos justos».
Tudo isto viveu e testemunhou entre nós D. António agora na «cidade do
Deus vivo, na Jerusalém celeste, com milhares de anjos em reunião
festiva, numa assembleia de primogénitos inscritos no céu, com Deus, juiz
do universo, com os espíritos dos justos que atingiram a perfeição, junto
de Jesus mediador da nova aliança». Que interceda por nós!

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