XXI Domingo do Tempo Comum – Nos 488 anos de Angra (cidade)
21 de Agosto de 2022
O anúncio do evangelho deste domingo tem uma dupla dimensão: por
uma lado a afirmação da universalidade da salvação em Cristo, com toda a
urgência missionária que isso supõe; por outro, a séria advertência de
Jesus: «esforçai-vos por entrar pela porta estreita», que tem eco na 2ª.
Leitura da carta aos Hebreus.
Tudo parte da pergunta de um desconhecido: «Senhor são poucos os que
se salvam?». Jesus não responde com percentagens, mas mostra que a
questão é pertinente. Não sei se hoje alguém faria esta pergunta sobre a
salvação. Mas na verdade quando estamos aflitos ou em perigo é o que
pedimos: no mar revolto, numa tempestade, num terramoto, num
incêndio, numa trovoada com os relâmpados a cair sobre nós, numa
doença incurável, num acidente, na prisão, perante a morte, na
consciência do pecado. É o último grito que damos, do mais profundo do
nosso desejo, de um pedido de ajuda e de graça.
Na primeira dimensão do anúncio aprendemos pelos ensinamentos de
Jesus que Ele quer à sua mesa, sentados com os patriarcas, os profetas e
todos os santos, na comunhão do seu Reino a todos, à gente de todas as
partes. Recorde-se o que diz a Palavra de Deus: «Hão-de vir do Oriente e
do Ocidente, do Norte e do Sul, sentar-se à mesa no Reino de Deus». Já o
profeta Isaías nos havia dito «Eu virei reunir todas as nações, para que
venham contemplar a minha glória» e ainda chegarei «às ilhas remotas
que não ouviram falar de Mim nem contemplaram a minha glória».
Também no Livro do Apocalipse ouvimos: «Não causeis dano à terra, nem
ao mar, nem às árvores, até que tenhamos marcado na fronte os servos
do nosso Deus. E ouvi o número dos que foram marcados: cento e
quarenta e quatro mil, de todas as tribos dos filhos de Israel. Depois disto,
vi uma multidão imensa, que ninguém podia contar, de todas as nações,
tribos, povos e línguas».
A 1ª. Leitura e o salmo responsarial – «Ide por todo o mundo e anunciai o
evangelho. Louvai o Senhor todas as nações, aclamai-o todos os povos»
orientam-nos neste sentido: o novo templo de Jerusalém está aberto a
todos. Evoca-se um texto e um espírito semelhantes ao da epifania:
«Levanta-te e resplandece, Jerusalém, porque chegou a tua luz e brilha
sobre ti a glória do Senhor. As nações caminharão à tua luz e os reis ao
esplendor da tua aurora. Olha ao redor e vê: todos se reúnem e vêem ao
teu encontro».
A 2ª dimensão do anúncio, depois da universalidade da salvação e da
graça, centra-se na exortação a entrar pela porta estreita. Já a 2ª. Leitura
alerta-nos para a necessidade de ser corrigidos, e como a correcção nunca
é agradável, mais para aquela a recebe do que para quem a faz; alerta-nos
para as dificuldades e provações por que temos de passar através de
sofrimentos e contradições. Falar da necessidade de correcção para a
salvação é muito oportuno numa época pouco inclinada a acreditar que as
dificuldades possam ter algum sentido.
Toda a graça, dons e gratuitidade origina a correspondente resposta,
missão e tarefa pessoais. Os dons de Deus, uma vez recebidos convertem-
se em exigência. Jesus não foi enviado para resolver os nossos problemas,
mas para nos animar e ajudar a que cada um de nós a assumir com
verdade, esperança e responsabilidade a sua própria história. Não
cruzamos os braços, não ficamos parados ou resignados, como se nada
fosse connosco. A palavra de ordem é «esforçai-vos», empenhai-vos.
Mesmo aqui devemos estar atentos à tentação subtil farisaica, que é pôr a
confiança no seu próprio agir moral. De quem crê que o mero
cumprimento da lei e do rito lhe assegurar um direito diante de Deus. É
como se aplicasse «a tirania do mérito», tão presente na cultura actual,
reduzindo a vida cristã a um puro actuar moral. É quase como um
neopelagianismo que anula o valor da graça para confiar só nas próprias
forças. Ou então um gnosticismo que reduz a fé cristã a um subjectivismo
que encerra o individuo na imanência da sua própria razão ou dos seus
sentimentos. O esforço moral significa mais a expressão de um estado
novo do cristão que uma simples obediência a um imperativo externo e
abstracto. Todo o compromisso cristão há-de partir do reconhecimento da
primazia da graça transformadora do Espírito Santo.
A moral cristã insiste em que o primado está no amor misericordioso de
Deus, e portanto aparece como uma mensagem e uma boa notícia, que
nos liberta e nos realiza, nos enche de ânimo e de esperança, que conduz
à felicidade. «Esforçai-vos» significa um esforçar-se por entrar pela porta
estreita da graça do Reino, estreita porque só pode entrar por ela os que
se fazem como as crianças, os simples, os pequenos.
A esta porta estreita podemos associar a assunção pessoal da paixão e da
cruz. Não há cruzes largas, pois o que tem valor é caro, custa. Ora,
«carregar a cruz cada dia» é entrar pela porta estreita. São João apresenta
Jesus no evangelho como sendo a porta e é por ela que se passa para
entrar no seu reino. Está aberta, mas também se fecha. Hoje são Lucas
lembra-nos não só que Jesus é a porta, mas que essa porta é estreita. Uma
vez que não devemos mudar de porta nem nos compete alterar a sua
configuração e medidas, então será cada um a adaptar-se, ou seja a
converter-se, a fazer-se mais pequeno, a baixar-se, a reduzir o peso e o
inchaço de si mesmo, a ser humilde e moderado, e a ficar leve para poder
passar e entrar, sentar-se à mesa e cear.
«Desejo ardentemente comer esta Páscoa connosco, antes de padecer. (Lc
22, 15), diz Jesus. Ninguém ganhou o lugar nessa Ceia, todos foram
convidados, ou melhor dito, atraídos pelo desejo ardente que Jesus tem
de comer esta Páscoa connosco.
A imagem da mesa do reino de Deus, como lugar de reunião da
diversidade na unidade da salvação, pode referir-se à Eucaristia que
estamos a celebrar. O primeiro convite é a entrar e a sentar-se. Toda a
celebração eucarística é precisamente isto, não é um convite para elites;
aqui chega gente de toda de todas as partes, classes, condições e idades; é
Deus quem nos convida e convoca. Esta, antes de ser uma mesa de
amigos, até de pessoas que não se conhecem, é a mesa de pecadores
arrependidos e redimidos, a «mesa dos salvados» pela graça.
Hélder, Administrador Diocesano de Angra