Matriz da Povoação.

«Ninguém sabe as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus. Ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. Mas o que é espiritual discerne bem tudo. (cf. 1 Cor. 2, 1-16).

A solenidade do Corpo e Sangue de Cristo é de natureza espiritual e contemplativa. É a contemplação deste mistério que, neste dia em particular, pretende suscitar adoração, louvor e agradecimento por este dom de amor, que é fonte e centro de toda a vida cristã.

Falar de corpo pode parecer estranho ao falar de Deus enquanto ser espiritual. Mas em Jesus Cristo, Deus faz-se corpo para se relacionar connosco efetiva e afetivamente e nos encher de humanidade e de graça. Faz-Se corpo no seio da Virgem Maria, no presépio da encarnação, na oficina de um trabalhador, no monte como orante, na praça como profeta, no Calvário numa cruz, no sepulcro vazio como ressuscitado, e no altar da Eucaristia como alimento.

Na raiz desta quinta feira do corpo de Deus está a quinta feira santa. Acontece que a celebração do primeiro dia do tríduo pascal acaba no contexto da agonia, da entrega e da paixão de Jesus. O sentimento é de tristeza e naturalmente de jejum, como quando nos arrancam alguém que nos ama, passa-nos a vontade de comer. Por isso não fazemos uma festa de exaltação da Eucaristia, por sublinharmos uma dimensão importantíssima que é o sacrifício, a entrega de Jesus em tudo o que Ele é, corpo, sangue, alma e divindade, para perdão e remissão dos pecados e para salvação de todos homens e mulheres. É por isso que oferecemos a Missa por vivos e defuntos, nominalmente e por ocasiões especiais, não multiplicando sacrifícios com pessoas ou animais, mas unindo-nos ao único sacrifício que nos basta, à única vítima, ao único sacerdote e ao único altar, que é Jesus Cristo, o mesmo ontem, hoje e por toda a eternidade.

Estamos a fazer uma prática que nós próprios recebemos dos nossos antepassados e transmitimos aos nossos coetâneos e descendentes. Onde vamos beber esta tradição? Ao Senhor Jesus e aos apóstolos, como por exemplo a Paulo, que a meados do primeiro século da era cristã, deixou o mais antigo registo da Eucaristia que conhecemos:

«Porque eu recebi do Senhor o que também vos transmiti: que o Senhor Jesus, na noite em que foi entregue, tomou o pão;
e, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai e comei; isto é o meu corpo que é entregue por vós; fazei isto em memória de mim.
De igual modo, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei isto em memória de mim. Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice anunciareis a morte do Senhor, até que venha. (1 Cor. 11, 23-26).

Logo no século seguinte (ano de 112), um pagão chamado Plínio, o Moço, escreve a Trajano, Imperador de Roma, dizendo-lhe que «os cristãos têm o hábito de se reunir em dia fixo, antes do nascer do sol, e de cantar entre eles, alternadamente um hino a Cristo. Depois separam-se «e voltam a reunir-se para uma refeição em comum, simples e inocente, a pesar dos boatos que correm sobre ela».

O dia fixo certamente é o domingo; antes do nascer do sol quer dizer de noite; o domingo era dia de trabalho e de dia era preciso trabalhar; os cânticos alternados devem ser entre hinos cristãos e salmos; depois do trabalho voltam a reunir-se para a Ceia do Senhor; sobre boatos não sabemos quais, mas habitualmente não são positivos. Apesar das hostilidades e perseguições, o escritor pagão escreve que trata de uma «refeição simples e inocente» que ele não entendia.

Esta festa, como a conhecemos hoje, é instituída já no segundo milénio (1264) como reposta às heresias que colocavam em causa a presença real de Cristo na Eucaristia e pela devoção ao Santíssimo Sacramento que que se intensificava na prática dos fiéis tal como chega à Povoação há 590 anos com os povoadores e depois nos primeiros anos do século XX, com o esplendor que hoje conhecemos.

Ora, a comunidade cristã é convocada para reafirmar a sua fé no mistério que se celebra no sacramento eucarístico. A Eucaristia, pelo Espírito Santo, faz memória e atualização do mistério pascal, ou seja, da morte e ressurreição de Jesus, que comunicando o amor que Deus é, concede a salvação a toda a humanidade. Nas palavras Bento XVI, o mistério eucarístico «é a doação que Jesus Cristo faz de si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por cada homem».

A Eucaristia antes de mais é para ser celebrada, tal como a última Ceia, é banquete, com comida, bebida, relação, festa, comunhão, alegria. Começa com a nossa existência em Cristo, com o Batismo. Está associada à iniciação cristã. À medida que esta vai acontecendo recebe-se a primeira comunhão; em cada domingo não a devemos desperdiçar, e assim é ao longo da vida, até chegar a um dia em que à sagrada comunhão chamados de viático, isto é, de caminho para a Páscoa eterna e para a comunhão plena com Deus e com os santos.

«Eu sou o Pão da Vida», diz Jesus, «quem comer deste pão viverá eternamente». Estamos assim protegidos, tal como já no Antigo Testamento, pelo mandamento «Não matarás». Por isso todas as formas de violência, fome, guerra, abusos, suicídio, aborto, eutanásia são contrárias à vontade e ao plano de Deus. Se nos faltar esta proteção ficamos à mercê de leis humanas apuradas por maiorias que, por si, não garantem a proteção sobretudo aos mais frágeis e vulneráveis.

A este propósito, os bispos portugueses reafirmaram esta semana «que a morte provocada não pode ser a resposta dada pelo Estado e pelos serviços de saúde a quaisquer situações como a morte iminente, a doença incurável ou uma deficiência. A “mensagem cultural” que a legalização da eutanásia e do suicídio assistido veicula é a de que a morte provocada é uma resposta possível para enfrentar tais situações. Tal resposta deverá ser sempre a do esforço solidário para combater e aliviar a doença e o sofrimento, designadamente através dos cuidados paliativos, ainda não acessíveis à maioria dos portugueses deles necessitada. Com a eutanásia e o suicídio assistido não se combate o sofrimento, suprime-se a vida da pessoa que sofre. Neste contexto, é evidente o perigo de que haja doentes, especialmente os mais vulneráveis, que se sintam socialmente pressionados a requerer a eutanásia, porque se sentem “a mais” ou “um peso” em termos familiares e sociais. Propaga-se, assim, a cultura do “descartável” continuamente denunciada pelo Papa Francisco». O nosso caminho, o nosso propósito e o nosso destino não serão estes certamente.

A Eucaristia, que atualiza continuamente o mistério pascal de Cristo entre nós, é a fonte de toda a graça e da remissão dos pecados. Contudo, quem tenciona receber o Corpo do Senhor, para alcançar os frutos do sacramento pascal, deve aproximar-se dele de consciência pura, mediante o arrependimento e a confissão dos pecados, e com as devidas disposições do espírito.

A união com Cristo, à qual se destina este sacramento, deve prolongar-se por toda a vida cristã, de modo que os cristãos vivam cada dia em ação de graças, produzindo abundantes frutos de caridade. Tendo passado deste mundo para o Pai, Cristo deixou-nos na Eucaristia o penhor da glória junto d’Ele: a participação no santo sacrifício identifica-nos com o seu coração, sustenta as nossas forças ao longo da peregrinação desta vida, faz-nos desejar a vida eterna e desde já nos une à Igreja do céu, à Virgem Maria e a todos os santos.

Ganha hoje maior sentido a exclamação de São Tomás de Aquino diante deste mistério: «Ó sagrado banquete em que se recebe Cristo e se comemora a sua paixão, em que a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da futura glória».

Sermão na Praça do Município da Povoação.

A festa de hoje faz-nos centrar a nossa atenção agradecida na Eucaristia como sacramento em que Cristo pensou dar—se- nos como alimento para o caminho, fazendo-nos comungar com a sua própria pessoa, pessoa de corpo e sangue, sob a forma do pão e do vinho. Só temos acesso a Deus «sob a forma de», tal como o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos também sob a «forma de».

Não temos outra maneira de nos entendermos, a não ser pela linguagem sacramental, em que há palavra, relação e matéria. Hoje à forma chamamos hóstia e cálice, e sob essas formas que vemos esconde-se uma realidade, uma substância, uma pessoa que não vemos. É o mistério da fé da Igreja «que nos gloriamos de professar em Jesus Cristo nosso Senhor».

«Felizes os convidados para a ceia do Senhor», uma vez que o banquete está preparado; «felizes os que acreditam sem terem visto» diz Jesus a Tomé e aos discípulos do futuro, ao que Tomé exclama «Meu Senhor e Meu Deus». Tal como nós, Tomé viu uma realidade e confessa outra, como perante o pão e o vinho consagrados ao ver uma realidade material também confessamos outra espiritual: «meu Senhor e meu Deus».

Na espiritualidade cristã oriental, a transfiguração de Cristo, segundo alguns autores, não foi Jesus a transfigurar-se, mas foram os olhos dos discípulos que conheceram um processo de transfiguração, e assim foram capazes de ver nele aquilo que antes não viam: Ele era carne frágil como eles, mas, ao mesmo tempo, Filho de Deus, imagem do Pai invisível. Sim, nós precisamos de transfiguração para perceber a verdadeira beleza, para ver o invisível no visível. «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus».

A festa de hoje convida-nos a olhar a Eucaristia nas suas duas vertentes, que são dois aspetos do mesmo mistério: a celebração e e o seu prolongamento.  Antes de mais, a dar valor e a melhorar a própria celebração da missa dominical como sinal do nosso apreço, piedade e devoção do sacramento que nos deixou o Senhor Jesus: na motivação, na atitude interior de coração, numa consciência purificada, no arrependimento dos pecados, nos ministérios variados e necessários, na composição e no cuidado do lugar onde celebramos, na música, no canto, no silencio, nas flores, na luz. Não se trata de um espetáculo, para ser visto para fora; para a glória de Deus toda a beleza que damos fica sempre aquém da que Lhe é merecida e que partilhamos uns com os outros.

Agora não nos fixamos tanto na celebração da Eucaristia propriamente dita, embora a gente venha dela, mas no seu prolongamento, na presença permanente do Senhor Ressuscitado e Eucarístico no meio de Povo de Deus, como alimento disponível para os doentes e como sinal sacramental continuado da sua presença nas nossas vidas.

Para o culto eucarístico fora da celebração nasceram as confrarias ou irmandades do santíssimo Sacramento, a adoração noturna, a adoração perpétua, o lausperene, as 24 horas para o Senhor, as capelas do santíssimo Sacramento, as custódias ou ostensórios para a exposição pública e adoração, os cânticos, os relicários, os ministros da comunhão, a assistência aos doentes, a procissão aos enfermos,  o levantar a Deus e o repicar dos sinos nesse momento, e a festa do Corpo de Deus que nesta Vila da Povoação é assumida pela respetiva Câmara Municipal, em representação do povo das seis paróquias do concelho.

Desde 1905, a festa pública do Corpo de Deus é assumida pela Autarquia Local, ainda no tempo da monarquia, da primeira república, do Estado Novo, das guerras mundiais, da Revolução de Abril, do Regime Autonómico, das várias catástrofes naturais, das divergências políticas e do laicismo.  Lembrando as palavras de Cristo, «sem Mim nada podeis fazer», não podemos dispensar o seu alimento e companhia pelo mistério que instituiu e nos legou.

Aqui, desta varanda, símbolo do poder local, subsistem hoje a justiça, a verdade e a misericórdia, que nenhuma enxurrada ou derrocada conseguiram destruir, tal como a de 25 de junho do ano passado, cujas marcas profundas permanecem em duas famílias aqui presentes, confortadas pela comunhão no amor que em Cristo  é mais forte do que a morte.

Sinais do culto e do respeito que ele nos merece recordemos a dignidade do sacrário, a lâmpada acesa a dizer que há alguém em casa, a genuflexão quando passamos diante do Santíssimo, os momentos pessoais de oração ou de visita perante o Senhor na Eucaristia, a bênção do Santíssimo com uma exposição mais ou menos prolongada para adoração comunitária. Tudo isto são maneiras de fazer e prolongar a festa de hoje.

É impressionante a arte de tapeçaria que cobre as ruas desta vila; embora laboriosa não deixa de ser arte efémera, isto é, tem que se estar aqui neste momento para a saborear. Assim é na celebração da Eucaristia. Ora, a presença de Cristo continua em cada pessoa, nestas mesmas ruas e na igreja. Com esta manifestação queremos dizer que Cristo está presente sobretudo quando celebramos a Eucaristia, mas uma vez terminada a celebração Ele continua nas sagradas espécies como Deus connosco e como Deus em nós.

O fim primário e primitivo da Reserva eucarística fora da Missa é a administração do Viático, isto é, da comunhão aos que estão perto da passagem deste mundo para o Pai como «caminho, verdade e vida»; os fins secundários são a distribuição da comunhão e a adoração de nosso Senhor Jesus Cristo presente no santíssimo Sacramento. A conservação das sagradas espécies para os enfermos deu origem ao costume de adorar este alimento do céu nas nossas igrejas junto do sacrário e em procissão.  A presença de Cristo debaixo das espécies do pão e do vinho chama-se real por excelência, não por exclusão, como se outras formas não fossem também reais.

«Dai-lhes vós mesmos de comer», diz Jesus no evangelho deste dia, é um apelo prolongar a sacramentalidade da Eucaristia de outra forma, na consciência social por ela despertada. Não é um apenas um apelo à generosidade, à partilha, à organização da caridade, mas sobretudo uma inquietação, uma contestação à indiferença e ao desinteresse em relação ao outro. A pobreza dos cinco pães e dos dois peixes não é impedimento nem obstáculo para Jesus, mas um espaço necessário para o dom, como sinal do poder, da bênção e da misericórdia de Deus e lugar de instauração de fraternidade e de comunhão.

Há uma parte que é nossa, como a distribuição ou a repartição, tal como fizemos nos últimos domingos do Espírito Santo e da Trindade. O Império faz o milagre da abundância e da distribuição. «Todos comeram e ficaram saciados» e não houve desperdícios. Quanto ao método, temos de aprender a medida. Jesus mandou formar grupos. A medida é a mesa humana, de uma família humana, ainda que alargada. Tal como acontece nas pequenas copeiras de Santa Maria é possível toda a população da ilha comer, tantas quantas as pessoas da multiplicação dos pães, a partir das mesas e do serviço que se vai renovando durante o dia. Que lição nos dá o evangelho e a prática do Império do Espírito Santo.

Na Palavra de Deus deste dia, Abraão terá vindo cansado da sua expedição, Paulo casado da sua labuta, e a multidão do evangelho, em número semelhante à população deste concelho, estava cansada e faminta no seguimento de Jesus.  Nós também com frequência, experimentamos o cansaço e pó no caminho e podemo-nos sentir exaustos pelas dificuldades da vida. Aqui temos o alimento que Deus nos preparou, isto é, Ele mesmo, o seu Corpo e Sangue, «reconhecido ao partir do pão», o senhor ressuscitado, como alimento e viático para o caminho.  Este pão é para a nossa condição ou estado de peregrinos e caminhantes. O próprio Jesus também nos convida assim: «Vinde a Mim todos vós qua andais cansados e oprimidos e Eu vos aliviarei. Aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração e encontrareis alívio para as vossas almas».

«Adoro-Te com devoção, ó Deus que Te escondes, que sob estas figuras de verdade Te ocultas: A Ti meu coração se submete inteiramente porque, ao contemplar-Te, desfalece por completo. Visão, tato e paladar em Ti falham, apenas ouvindo se crê com segurança: Creio em tudo o que disse o Filho de Deus:
Nada mais verdadeiro que esta palavra da Verdade».

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