I Domingo da Quaresma

Sé, 6 de Março de 2022

Os evangelhos falam dum tempo de solidão que Jesus passou no
deserto, imediatamente depois de ter sido baptizado por João:
«Impelido» pelo Espírito para o deserto. Jesus ali permanece sem
comer durante quarenta dias. Vive com os animais selvagens e os
anjos servem-nO. No fim desse tempo, Satanás tenta-O por três
vezes, procurando pôr em causa a sua atitude filial para com Deus;
Jesus repele esses ataques, que recapitulam as tentações de Adão no
paraíso e de Israel no deserto; e o Diabo afasta-se d’Ele «até
determinada altura»   (Lc 4, 13).


Os evangelistas indicam o sentido salvífico deste acontecimento
misterioso, Jesus é o Novo Adão, que Se mantém fiel naquilo em que
o primeiro sucumbiu à tentação. Jesus cumpre perfeitamente a
vocação de Israel: contrariamente aos que outrora, durante quarenta
anos, provocaram a Deus no deserto, Cristo revela-Se o Servo de
Deus totalmente obediente à vontade divina. Nisto, Jesus vence o
Diabo: «amarrou o homem forte», para lhe tirar os despojos. A
vitória de Jesus sobre o tentador, no deserto, antecipa a vitória da
paixão, suprema obediência do seu amor filial ao Pai.


A  tentação de Jesus manifesta a maneira própria de o Filho de Deus
ser Messias, ao contrário da que Lhe propõe Satanás e que os
homens desejam atribuir-Lhe. Foi por isso que Cristo venceu o
Tentador,  por nós:  «Nós não temos um sumo-sacerdote incapaz de
se compadecer das nossas fraquezas; temos um, que possui a
experiência de todas as provações, tal como nós, com excepção do
pecado» (Heb 4, 15). Todos os anos, pelos quarenta dias da Grande
Quaresma,  a Igreja une-se ao mistério de Jesus no deserto, diz o
catecismo a Igreja Católica.


As três tentações são os três caminhos que o mundo de hoje e de
sempre propõe: a avidez da posse, a glória humana e a
instrumentalização de Deus.

Recorde-se a última petição que Jesus nos ensina na oração de
referência o Pai Nosso: «Não nos deixeis cair em tentação», porque
os nossos pecados são fruto do consentimento na tentação. Traduzir
numa só palavra o termo grego é difícil. Significa «não permitas que
entre em», «não nos deixes sucumbir à tentação». «Deus não é
tentado pelo mal, nem tenta ninguém» (Tg 1, 13). Pelo contrário, Ele
quer livrar-nos do mal. O que Lhe pedimos é que não nos deixe
seguir pelo caminho que conduz ao pecado. Esta petição implora o
Espírito de discernimento e de fortaleza.


O  Espírito Santo permite-nos discernir entre a provação, necessária
ao crescimento do homem interior em vista duma virtude
«comprovada» e a tentação que conduz ao pecado e à morte.
Devemos também distinguir entre «ser tentado» e «consentir» na
tentação. Finalmente, o discernimento desmascara a mentira da
tentação: aparentemente, o seu objecto é «bom, agradável à vista,
desejável» (Gn 3, 6), quando, na realidade, o seu fruto é a morte.
«Deus não quer impor o bem, quer seres livres […]. Para alguma
coisa serve a tentação. Ninguém, senão Deus, sabe o que a nossa
alma recebeu de Deus, nem nós próprios. Mas a tentação manifesta-
o para nos ensinar a conhecermo-nos e desse modo descobrir a
nossa miséria e obrigar-nos a dar graças pelos bens que a tentação
nos manifestou» (Orígenes).


«Não entrar em tentação» implica uma decisão do coração: «Onde
estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração […] Ninguém
pode servir a dois senhores» (Mt 6, 21, 24). «Se vivemos pelo
Espírito, caminhemos também segundo o Espírito» (Gl 5, 25). É
neste «consentimento» ao Espírito Santo que o Pai nos dá a força.
«Não vos surpreendeu nenhuma tentação que tivesse ultrapassado a
medida humana. Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados
acima das vossas forças, mas, com a tentação, vos dará os meios de
sair dela e a força para a suportar»  (1 Cor 10, 13).


Ora um tal combate e uma tal vitória só são possíveis pela oração e
pela Palavra de Deus. Jesus não dialoga com o diabo, pois com o
diabo não se fala. Se ele nos abordar respondamos-lhe com a Palavra

de Deus. Foi pela oração que Jesus venceu o Tentador desde o
princípio e no último combate da sua agonia. A vigilância é a
«guarda do coração» e Jesus pede ao Pai que «nos guarde em seu
nome». O Espírito Santo procura incessantemente despertar-nos
para esta vigilância. Esta petição adquire todo o seu sentido
dramático, quando relacionada com a tentação final do nosso
combate na terra: ela pede a perseverança final.  «Olhai que vou
chegar como um ladrão: feliz de quem estiver vigilante!» (Ap 16, 15).


A este propósito pregou e escreveu Santo Agostinho: «o Senhor
transfigurou-nos em Si, quando quis ser tentado por Satanás.
Líamos há pouco no Evangelho que o Senhor Jesus Cristo era
tentado pelo demónio no deserto. Na verdade, Cristo foi tentado
pelo demónio. Mas em Cristo também tu eras tentado, porque Ele
tomou para Si a tua condição humana, para te dar a sua salvação;
para Si tomou a tua morte, para te dar a sua vida; para Si tomou os
teus ultrajes, para te dar a sua glória; por conseguinte, para Si tomou
as tuas tentações, para te dar a sua vitória.


 Se n’Ele somos tentados, n’Ele vencemos o demónio. Se te fixas no
facto de Cristo ter sido tentado, considera também que Ele venceu.
Reconhece-te tentado n’Ele, reconhece-te n’Ele vencedor. Bem
poderia Ele ter mantido o demónio longe de Si; mas se não fosse
tentado, não teria ensinado a vencer a tentação.


Rezemos hoje com mais afinco, até por estarmos em tempo de
calamidade pela guerra: «Livrai-nos de todo o mal, Senhor, e dai ao
mundo a paz em nossos dias, para que, ajudados pela vossa
misericórdia, sejamos sempre livres do pecado e de toda a
perturbação, enquanto esperamos a vinda gloriosa de Jesus Cristo
nosso Salvador».

Hélder, Administrador Diocesano de Angra

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