No centenário na Festa de Santa Cecília
XXXIII Domingo do Tempo Comum – Horta, 13 de novembro de 2022
Os textos bíblicos da celebração de hoje fazem-nos olhar o nosso
futuro e o da humanidade; mais do que o fim, a finalidade. Falam de
destruição, mas também de uma novidade: «para vós que temeis o
Meu nome, nascerá o sol da justiça, trazendo nos seus raios a
salvação».
A mensagem deste domingo compreende o anúncio da vinda do dia
do Senhor. Cada domingo lembramos esse dia, como o primeiro na
ordem a criação e como oitavo na ordem da ressurreição. Esse dia
do Senhor é dia de juízo, de salvação e de cura. Trata-se de uma
exortação à perseverança e à vigilância, ao discernimento contra a
alienação e o engano, para que não nos deixemos tomar pelo medo
e pela angústia. A perseverança que salva a alma não é nada de
intimista, mas um ato de responsabilidade histórica de quem ousa
pensar o futuro para além e depois de si. Longe de ser sinal de um
pretenso fim do mundo iminente, estes acontecimentos são
compreendidos como ocasião de martiria, isto é, de testemunho.
«Antes de tudo isto, deitar-vos-ão as mãos e hão-de perseguir-vos,
entregando-vos às sinagogas e às prisões, conduzindo-vos à
presença de reis e governadores, por causa do meu nome. Assim
tereis ocasião de dar testemunho», diz o evangelho desta manhã.
Esta palavra é para nós. É viável e exequível pelo testemunho de
vida de tantos e tantas que nos precederam, como é o caso da
jovem Cecília, que ainda hoje admiramos, como padrão ou
referência para o seguimento de Cristo.
Cecília, de nobre família romana, foi dada em casamento, contra a
sua vontade, a um jovem. Se bem que tivesse alegado os motivos
que a levavam a não aceitar este contrato, a vontade dos pais
impôs-se. Estando só com o noivo, disse-lhe: “Valeriano, não
queiras fazer coisa alguma contra mim”. A estas palavras,
incompreensíveis para um pagão, Cecília fez seguir a declaração
de ser cristã e de ter feito um voto a Deus de guardar a sua pureza.
Valeriano, ficou “vivamente impressionado” com as declarações da
noiva e respeitando a sua vontade, converteu-se e recebeu o
batismo.
O prefeito de Roma teve conhecimento da conversão dos dois e
exigiu que abandonassem, sob pena de morte, a religião que
tinham abraçado. Diante da recusa formal, foram condenados à
morte e decapitados. Também Cecília teve de comparecer na
presença do juiz. Antes de mais nada, foi intimada a revelar onde
estavam escondidos os tesouros dos dois sentenciados. Cecília
respondeu-lhe que os tinha bem guardados, sem deixar perceber
ao tirano que já tinham destino nas mãos dos pobres”.
Vem isto mesmo a propósito de hoje ser O Dia Mundial dos
Pobres que nos faz uma sadia provocação para nos ajudar a refletir
sobre o nosso estilo de vida e as inúmeras pobrezas da hora atual.
«Jesus Cristo fez-Se pobre por vós» (2 Cor 8, 9).
O Papa Francisco, na sua mensagem para hoje, lembra que «a
experiência de fragilidade e limitação, que vivemos nestes últimos
anos e, agora, a tragédia duma guerra com repercussões globais,
devem ensinar-nos decididamente uma coisa: não estamos no
mundo para sobreviver, mas para que, a todos, seja consentida
uma vida digna e feliz».
A mensagem de Jesus mostra-nos o caminho e faz-nos descobrir a
existência duma pobreza que humilha e mata, e há outra pobreza –
a d’Ele – que liberta e nos dá serenidade».
«A pobreza que mata é a miséria, filha da injustiça, da exploração,
da violência e da iníqua distribuição dos recursos. É a pobreza
desesperada, sem futuro, porque é imposta pela cultura do descarte
que não oferece perspetivas nem vias de saída. Ao contrário,
pobreza libertadora é aquela que se nos apresenta como uma
opção responsável para alijar da estiva quanto há de supérfluo e
apostar no essencial».
Oxalá este Dia Mundial dos Pobres se torne uma oportunidade de
graça, para fazermos um exame de consciência, interrogando-nos
se a pobreza de Jesus Cristo é a nossa fiel companheira de vida.
Após a opção por Jesus Cristo e pela sua pobreza libertadora e
bem-aventurada, Cecília foi obrigada a render homenagens aos
deuses. Conduzida a um lugar determinado para o martírio, falou
com tanta convicção aos soldados da beleza da religião de Cristo
que estes se declararam a seu favor, e prometeram abandonar o
culto dos deuses.
A Igreja ocidental, como a oriental, têm grande veneração pela
Mártir, cujo nome figura no cânon da Missa. O ofício desta festa traz
como antífona um tópico das atas do martírio, as quais afirmam que
nos festejos do casamento, ouvindo o som dos instrumentos
musicais, Cecília teria elevado o coração a Deus: “Senhor, guardai
sem mancha o meu corpo e a minha alma, para que não seja
confundida”. Desde o século XV, Santa Cecília é considerada
padroeira da música sacra.
Por esse motivo muitos compositores nela inspirados produziram
belas obras musicais e tem serviço de pretexto entre nós, ainda
hoje, para formar músicos e cantores. Estamos diante de um
testemunho vivo, de homens e mulheres, jovens e idosos, ricos e
pobres, que ao longo destes 100 anos, não só fizeram com prazer
coisas belas através da música, como tornaram belas a suas vidas
pela graça de Deus, tal como Cecília, sempre a cantar «um cântico
novo» até à morte. A partilha do saber, o tocar juntos, cada um o
seu papel na harmonia de um todo – tal como a verdade que é
sinfónica – faz-nos mais ricos, com o sentido de precisarmos uns
dos outros, para que na diferença de cada um, com as mesmas
chaves de leitura, a comunhão aconteça.
Cada vez que celebramos a Eucaristia recordamos o passado
«proclamamos a morte do Senhor», com o olhar no futuro «até que
Ele venha», ainda que com tensão centrados no presente.
Celebramos a Eucaristia «enquanto esperamos a vinda gloriosa
vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo». O nosso destino está no
futuro e chama-se Deus. O futuro já está no hoje de cada dia. Por
isso não vivemos na ociosidade, mas na luta e no trabalho, por
construir uma nova criação, novos céus e nova terra, onde habite a
justiça e a paz.
«O Senhor virá governar com justiça» é a resposta que cantamos à
Palavra de Deus, pelo salmo que tão bem liga as leituras deste
domingo à festa de Santa Cecília: «Cantai ao Senhor ao som da
cítara, ao som da cítara e da lira; ao som da tuba e da trombeta,
aclamai o Senhor, nosso Rei. Ressoe o mar e tudo o que ele
encerra,
a terra inteira e tudo o que nela habita; aplaudam os rios e as
montanhas exultem de alegria». Assim seja!
Hélder, Administrador Diocesano de Angra