Família sujeito de evangelização
Para os pais cristãos, a missão educativa, tem uma fonte nova e específica no sacramento do Matrimónio, que os consagrada para a educação propriamente cristã dos filhos (FC 38). O educador é uma pessoa que «gera» em sentido espiritual. Nesta perspetiva, a educação pode ser considerada um verdadeiro e próprio apostolado. (Carta às Famílias, 10). Recordo as palavras do dia do vosso casamento: «Estais dispostos a receber amorosamente os filhos como dom de Deus e a educá-los segundo a lei de Cristo e da sua Igreja?» Pelo seu exemplo de vida quotidiana os pais crentes têm a capacidade mais envolvente de transmitir aos seus filhos a beleza da fé cristã. Os casais católicos devem superar a mentalidade comum de delegar esta tarefa seja num nos membros do casal, dispensando o outro, seja nos avós, no colégio, na escola, na paróquia, etc.
Membros importantes da família na transmissão da fé e do afeto são os avós. Eles desempenham um papel particular na transmissão da fé aos mais jovens, por se tornarem importantes pontos de referência para eles. Não raro muitos de nós devem aos avós a sua iniciação na vida cristã, seja pelo espaço de tempo que podem dedicar aos netos, pela riqueza da sabedoria e experiência de vida, pelo amor paciente, pela capacidade de encorajar e animar as jovens gerações com a sua carga afetiva.
De entre os membros da família e do casal, devemos considerar o grande contributo das mulheres na educação, na evangelização e na transmissão da fé. A maior parte de nós deve a uma mulher, sobretudo à mãe, a primeira e mais profunda experiência da atitude religiosa sobretudo na oração. Não é sem a razão que a maior parte dos catequistas da nossa Igreja Local são mulheres. Elas são capazes de testemunhar a sua maternidade, fecundidade, doação, mesmo nos momentos mais difíceis com ternura e dedicação. São capazes de servir nas coisas pequenas e grandes, cuidando dos mais pequenos, frágeis ou feridos (Cf. DC, 124- 129).
A este propósito o atual Diretório Catequese, distingue três âmbitos da catequese familiar, ou seja, a catequese na família, com a família e da família (cf. DC 226-231).
No primeiro âmbito, a família é um anúncio de fé, enquanto lugar natural onde a fé pode ser vivida de maneira simples e espontânea, sem uma preocupação orgânica e metódica. Por isso se pode falar de evangelização na família, a partir de dentro dela. É o lugar natural para a iniciação à vida, também à vida cristã, onde se desperta também para o sentido de Deus, onde se dá os primeiros passos, também na oração, onde se educa, também a consciência moral e o sentido cristão do amor humano.
A evangelização na família é mais testemunhada do que ensinada, mais ocasional que sistemática, de semana e de fim de semana, mais permanente e quotidiana, em tempo letivo e de férias, em trabalho e em passeio, mais permanente e quotidiana que estruturada em períodos ou blocos letivos.
A vida conjugal e familiar, vivida segundo o desígnio de Deus, constitui já em si mesma um Evangelho vivo, onde se pode ler o amor gratuito e paciente de Deus pela humanidade, onde há capacidade de doar e de perdoar. Tomando consciência disto, a família é já em si mesma um sujeito de evangelização, como se fosse um «presépio ao vivo», «a céu aberto», sem que tenha de se preocupar com outros instrumentos e manuais. É um ensaio permanente.
No segundo âmbito, a catequese com a família – A Igreja anuncia o Evangelho à família levando-a a experimentar que ele é «alegria que enche o coração e a vida inteira, porque em Cristo, somos libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior e do isolamento» (EG 1). É na família que deve brotar o primeiro anúncio ou querigma que é «o mais belo, mais importante, mais atraente e aos mesmo tempo mais necessário e deve ocupar o centro da atividade evangelizadora». Ele é primeiro anúncio não só na ordem cronológica ou quantitativa, mas sobretudo qualitativa e reiterada. (cf. AL 58, EG 35 e 164), marcado por um estilo de compreensão humilde e concreto.
No terceiro âmbito, a catequese da família – A família é sujeito de evangelização, como que um agente natural, não profissional ou académico, pois «o exercício de transmitir aos filhos a fé, no sentido de facilitar a sua expressão e crescimento, permite que a família se torne evangelizadora, e espontaneamente, comece a transmiti-la ao todos os
que se aproximam dela e mesmo fora do ambiente familiar», como quem diz «cá em casa é assim» embora possamos sempre discutir se há origem, caminho e destino melhor (AL 289). A catequese da família será, portanto, cada contributo específico que as famílias cristãs, com a sensibilidade que lhe é própria, uma vez que o afeto inspira confiança, dão aos diversos itinerários de fé que a comunidade propõe (DC 231).
Como exemplos ou possibilidades temos a catequese dos jovens e dos adultos que se preparam para o Matrimónio, a catequese dos casais jovens sobre a forma de mistagogia dos sacramentos que receberam, a catequese dos pais que pedem o batismo para os filhos, a catequese dos pais, cujos filhos fazem o percurso da iniciação cristã, a catequese intergeracional onde todas as gerações cabem, as catequeses nos grupos de esposos e famílias onde se desenvolve uma espiritualidade conjugal e familiar.
Não podemos ignorar os novos cenários familiares do nosso tempo, com situações complexas e problemáticas para a opção cristã. Apesar das feridas, do esvaziamento do significado transcendente e das fragilidades que caracterizam a família, há sempre uma espécie de saudade da mesma, que leva a procurar o seu valor e a construi-la ou reconstrui-la. Assim, a Igreja deve acompanhar as pessoas que estão marcadas por um amor ferido, numa condição mais frágil, voltando a dar-lhes confiança e esperança, invocando sempre a graça da conversão, a fazerem o bem, a cuidarem com amor um do outro, e colocarem-se ao serviço da comunidade onde vivem e trabalham (AL 78).
Não faltam cenas no evangelho onde Jesus aparece no meio de uma família, desde logo na sagrada família de Nazaré, num casamento em Caná da Galileia, em casa de Jairo devolvendo-lhe a filha viva, entregando o filho vivo à viúva de Naim, em casa de Marta e de Maria devolvendo-lhes Lázaro vivo, curando a sogra de Pedro, retirando um espírito imundo de um menino a pedido do pai e de uma filha a pedido da mãe estrangeira. O discernimento pode ser o seguinte: dentro da família de Deus situa-se a família dos cristãos e o critério última da vida familiar é a caridade.
Não nos faltam referencias evangélicas para ver a liberdade de Jesus frente à família de carne e sangue. Semião ainda tinha o Menino nos braços e já advertia a Mãe, que ele seria sinal de contradição para muitas pessoas (Lc. 2, 34); quando Jesus se perde e os pais o procuram entre os doutores, Ele responde-lhes «Não sabíeis que me devo ocupar das coisas de meu Pai?» (Lc 2, 49); no casamento em Caná, responde à mãe «Mulher, ainda não chegou a minha hora» (Jo 2,4); quando a família em determinado dia O foi buscar: alguém lhe disse: “Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e querem falar contigo”[. “Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?”, perguntou ele. E, estendendo a mão para os discípulos, disse: “Aqui estão minha mãe e meus irmãos! Pois quem faz a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe”». (Mt. 12, 46-50). Sobre o desapego aos bens materiais, inclusivamente à
família Jesus afirma: “Em verdade vos digo, quem tiver deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos, campos, por causa de Mim e do Evangelho, receberá cem vezes mais agora, durante esta vida” (Mc. 10, 29-30). Quando Pedro confessa a fé, não foi por ser filho de Jonas «Feliz de ti, porque não foram a carne e o sangue que to revelaram, mas sim meu Pai que está nos Céus» (Mt 16, 17). Sobre Jesus vir a ser causa de dissensões, mesmo no seio de uma família, isto é, para queles que aderiram a Ele e O aceitaram e para os outros que na mesma casa não tiveram essa atitude, Ele adverte: «Estarão divididos pai contra filho e filho contra pai, mãe contra filha e filha contra mãe, sogra contra nora e nora contra sogra”. (Lc 12,54); finalmente, na hora da morte, Jesus diz a João «Mulher, eis aí o teu Filho e depois disse ao discípulo, eis aí a tua mãe» (Jo 19,26-27).
A emancipação familiar de Jesus é por Deus e pelo Reino. A família – que no evangelho não é um absoluto – poderia atrapalhar na opção pelo reino, tornar-se um ídolo ou prolongamento de um egoísmo. Segundo os evangelistas, Jesus rompe o marco da família natural e estabelece umas novas relações: com o Pai, com os discípulos, com os pobres. Isto é, as exigências do Reino superam os laços familiares.
Então a família deve guiar-se cristãmente pelos valores do Reino: superar os desejos desmesurados promovidos pela sociedade de consumo, respeitar a criação e a casa comum que habitamos, não se fechar no interior exclusivo dos seus membros, superar as relações de domínio, agressividade, abusos ou violência; desenvolver a capacidade de resistência, de perdoar, de ser compassivo, de aceitação do sofrimento e da morte, reconhecer a paciência como uma propriedade do amor, exercitar a convivência a partir do dialogo e da comunicação, ser um lugar de participação ativa dos membros nos seus âmbitos de realização e o respeitar as diferenças uns dos outros, quando o amor e a verdade os une a todos.
Hélder, Administrador de Angra e Ilhas dos Açores
8 de fevereiro de 2022